6 de out. de 2015

A menina que era amiga da morte


A primeira vez que as duas se encontraram foi em uma doce tarde de outono. Sofia estava sentada em sua cadeirinha de balanço observando a sua bisavó se balançar na rede.
– Sabe Sofia – Dona Miranda estava debilitada pelos problemas de saúde, tanto é que os médicos recomendaram que ela se internasse em um hospital. Jamais! Foi o que ela respondeu. Tenho amor ao viver, e depender de aparelhos e de outros não está na definição de tão bela palavra. Então os médicos não puderam fazer nada a não ser concordarem com a cabeça, não tinham o porquê contrariar a paciente. – Quando a gente fica velho, velho que nem o mundo ou que nem a terra seca, as pessoas tendem a acharem que sabem de tudo sobre nós. – A senhora deu uma pequena pausa para tossir e aproveitou para tomar um copo d’agua.
– Como assim bisa Miranda? – Sofia estava com os dois olhinhos brilhantes fixados na mais velha.
Eu vou te explicar. – A senhora se ajeitou novamente na rede. – Sua mãe disse que não pode ter esse tipo de conversa com uma criança, que você não vai entender nada e ainda vai ficar assustada. Grande baboseira, você é a pessoa mais inteligente dessa casa! – E as duas riram livres. – Mas sim minha filha, o que eu quero dizer que quando mais você envelhece, mas você fica perto de conhecer uma pessoa muito especial. E as pessoas acham que isso é ruim! Te enchem de remédios, te impedem de andar! Te limitam para tudo!
– Como se você não fosse mais capaz? – A menininha perguntou.
– Exatamente! Claro que você já não vai ter toda a força das primeiras primaveras. Mas você ainda está vivo horas! Sua mãe insiste que eu não posso comer mais carne do sol. “Faz mal para o seu colesterol, vó.” – A senhora bufou. – Isso é uma grande besteira, nasci e me criei comendo carne do sol. E aqui estou eu, com 96 anos! Sabe qual é o problema dos adultos hoje em dia?
A mais nova balançou a cabeça em negação.
– Eles almejam viver mais, deixam de comer um monte de coisa, deixam de fazer outros montes. Eles podem até viver seus anos infinitos, mas vão ser um bando de rancorosos que não aproveitaram nada da vida! Do que adianta chegarem aos 130 se nunca tomaram um banho de chuva? Se nunca sentiram um pedaço do paraíso sobre os pés quando se pisa no barro molhado. São uns infelizes, guarde isso.
– Guardarei sim bisa. – E Sofia aproveitou para abraçar a mais velha, e foi quando percebeu que na porta tinha uma moça espiando toda a conversa. Aquilo assustou a pequena, mas logo se tranquilizou quando percebeu que sua bisavó olhava para a figura com um sorriso de felicidade. – Quem é essa?
– Essa Sofia, é uma amiga de longos tempos.
– Como vai Miranda? – A moça tinha se aproximado. Vestia um longo vestido, o tecido era escuro, com detalhes que pareciam runas, na cintura tinha uma corda dourada que usava como cinto, parte da sua cabeça não era mostrada por causa do capuz da roupa. Mas alguns fios de cabelo escapavam, e esses eram em tons cobreados. Sua face, sua face era misteriosa, cada pessoa via o que bem queria para lhe tranquilizar.
– Vou bem sim minha velha, mas não tão bem como eu pensava, já que você está me fazendo uma visita. – E as duas adultas riram.
– Bisa, quem é essa moça? – Sofia se escondia atrás da rede da mais velha.
– Perdoe-me pelos meus modos. – A ceifadora estendeu a mão para menina – Eu sou a Morte, mas por favor não tenha medo de mim, não estou aqui para fazer nenhum mal.
Sofia tocou na mão da outra, mas o frio que a Morte emana não era ruim, de alguma forma era reconfortante e acolhedor. – Seus pais te deram o nome de Morte? Por que?
– Creio que eles não tinham outra opção menininha, aproposito, qual é seu nome?
– Sofia. – E a criança abriu um sorriso.
– Sofia ... Sabia que seu nome deriva do saber?
– Sim! Minha bisa disse que eu sou a pessoa mais inteligente dessa casa. – A pequena estava toda orgulhosa.
– Se Miranda falou isso, quem sou eu para discutir? – E a moça pegou na mão da mais velha. – Vamos Miranda?
– Pensei que você nunca iria me chamar! – A senhora se levantou da rede e se apoiou na ceifadora.
– Para onde a senhora está indo bisa?
Miranda se virou para a amiga e perguntou se podia se despedir da bisneta.
– Claro que sim! Você sabe que eu acho despedidas lindas!
– E como eu sei ... Só não vá chorar como a última vez.
– Eu não prometo nada. – Morte levantou as mãos para cima como um sinal de rendição. – Seu marido realmente tinha o dom das palavras.
– É, ele tinha palavras bonitas, e um fígado péssimo. – A senhora se acocorou, não tinha mais as limitações do seu corpo idoso. – Sofia, venha aqui minha filha. – A menina se aproximou com passos tímidos. – Abrace essa velha mais uma vez.
– Bisa. – A menina tinha seus braços em volta da outra. – A senhora tem que ir agora?
– Tenho que ir sim minha criança.
– Senhora Morte, por que você está fazendo isso?
– Não, não, não Sofia! Ela não está fazendo nada de ruim, só está me ajudando.
– Miranda está certa menina, não sou eu quem decide quem vai morrer ou viver. Mas é o meu trabalha guia-los para depois da vida. Sou eu quem seguro a mão.
– Acho que eu entendi senhora. – A menina chorava um pouco, mas logo a bisa lhe enxugou as lágrimas. – Você pode cuidar bem dela?
– Claro que sim! Eu estou aqui para isso.
– Brigada senhora Morte, você não é má como os outros falam.
E a ceifadora sorriu, levando Miranda até a porta. – Tchau Sofia.
– Tchau senhora Morte, tchau bisa. – E a pequena menina assistiu as duas partirem.
Duas horas depois e a casa estava repleta de prantos e lamentações. Sofia observava no canto da pequena sala todos os acontecimentos, além dos murmúrios e dos choros, ouvia sempre frases de arrependimentos por não ter tido mais tempo para cuidar de Miranda ou sempre algo que lembrava como a mesma era em vida
A mãe de Sofia estava no canto junto com a filha. – Sabe minha pequena, você está sendo muito forte nesse momento, e eu admiro isso. – E a pequena abraçou a mãe e sorriu para a moça que espiava tudo encostada na porta.
O segundo encontro de Sofia com a morte foi cinco anos depois. Nesse meio tempo ela tinha lido muitos livros sobre o anjo que tinha avistado, mas nenhuma das discrições combinava com a doce moça que tinha conhecido.
Seu cachorro, o pequeno Amarelo não tinha amanhecido bem, por isso a família resolveu leva-lo para o veterinário.
Sofia, já não tão menina, estava sentada no banco da sala de espera, quando sentiu alguém acariciar seus ombros.
– Desculpe-me. – A Morte falou abraçando-a. – Trabalhar com isso a tanto tempo não o torna mais fácil.
A menina assentiu com a cabeça. – Por que nós temos tanto medo e ódio de você?
A Morte suspirou e ponderou para achar uma resposta. – Talvez porque eu sou a única que tem a reposta, que sabe o que vai acontecer, e vocês humanos tendem a temer o desconhecido. E eu sou o desconhecido. Mas se vocês cuidassem melhor, aproveitassem melhor o tempo com minha irmã mais nova, a Vida, a relação de vocês comigo podia ser diferente
– Sabe, depois do nosso primeiro encontro, eu comecei a querer saber mais sobre você, li muito livros, de religiões diferentes, das seitas mais diversas, muitos descreveram o que você faz, mas nenhum descreveu o que você é. Nenhum mostrava aquela moça que eu vi com a minha bisa.
– Eu Sofia, sou aquela que traz esperança. Sou aquela que traz paz para as almas dos aflitos. Sou a justa, sou a amiga que estende a mão. Sou a mais sábia, a sua guia. Para os filhos das guerras eu sou a amante sempre pronta para aceita-los com os braços abertos. Trago o alívio para aqueles que se contorcem de dores incuráveis. Eu sou o vento que leva as folhas para longe, para o infinito de incerteza. Sou anjo, sou demônio, depende de como me vêm. Sou a mãe paciente, sou a filha revoltada. Sou temida por alguns, mas a minha beleza ainda atrai muitos. Sou o fogo que queima a alma dos inocentes e perdoa os pecados que nunca aconteceram. Sou o mistério, sou o medo, sou o desconhecido. Sou a clareza, sou a coragem, sou a certeza. Sou castigada, acusada de levar inocentes, mas eu não cometo erros. Vago sem muitos amigos, carregando o peso do meu dom. Sou o animal seco na estrada. Sou a escuridão que toma conta do olhar de desespero. Sou as larvas que roem o material. Sou sangue seco. Sou o tiro no escuro. Sou a briga de um amor suposto. Eu trago o fim da sinfonia, a última melodia. Sou o ultimo bater. Sou aquela que leva ao início.
E depois dessas palavras a Morte se levantou, cumprimentou Sofia novamente e entrou na salinha onde Amarelo estava.
A menina virou garota, que virou mulher, que virou idosa. Chegou aos 91 e não teve nenhum arrependimento, levou o conselho da sua bisa para toda a sua jornada. Ao decorrer da vida tinha se encontrado com a ceifadora muitas vezes, e agora ela podia chamar ela de uma velha amiga. Nos seus últimos dias se arrumou toda, estava alegre, estava radiante. Muitos perguntavam qual o motivo de tanto esmero, e ela sempre respondia que estava esperando uma visita.
Numa fria tarde de inverno, sentada na varanda, avistou a moça novamente.
– Olá Sofia.
– Olá velha amiga.

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